CASTIGO DIVINO
Era o Apocalipse. Entre 1347 e 1352, a peste matou 50% dos europeus. Em 2011, o germe culpado foi achado em cadáveres de 700 anos num cemitério londrino (Obra de Giovanni Boccaccio/Corbis)
Ressuscitaram a
Peste Negra
Geneticistas reconstruíram
o DNA da bactéria que causou a epidemia mais mortal da história. Por que
reviver esse monstro?
PETER
MOON
O século XIV foi
terrível para a Europa Ocidental. A Inglaterra e a França se arruinaram na
Guerra dos 100 anos. O clima global começou a esfriar, dando início à Pequena
Era do Gelo (1400-1650), com a perda de colheitas e fome generalizada. Foi
nesse cenário de penúria e desnutrição que eclodiu a Peste Negra. Entre 1347 e
1352, entre 30% e 50% da população da Europa Ocidental morreu na pandemia mais
mortal da história. O total de vítimas no resto do planeta é desconhecido, mas
a magnitude da catástrofe deve ter sido semelhante. A humanidade já fora vítima
de pandemias terríveis – como a Praga de Atenas, em 430 a .C., ou a Peste de
Justiniano, que entre 541 e 544 se abateu sobre o império bizantino –, mas a
Peste Negra foi a pior delas. As vítimas eram acometidas de uma febre
repentina. O corpo era coberto por caroços purulentos e dolorosos, do tamanho
de laranjas. Os doentes deliravam. Morriam em uma semana.
Decorridos
700 anos, a Peste Negra continua matando na África e na Ásia. Causada pela
bactéria Yersinia pestis, a doença tem, hoje, baixa virulência e pode
ser combatida com antibióticos. Os sintomas atuais são tão brandos em
comparação com os relatos do século XIV que os infectologistas duvidavam que
seu causador fosse a mesma bactéria Y. pestis. Caso fosse, por que há 700 anos ela foi tão mais letal?
Há três semanas, a primeira
pergunta foi resolvida. Uma equipe internacional de geneticistas anunciou na
revista científicaNature ter
extraído o DNA da Y. pestis dos
dentes de quatro cadáveres: um homem, duas mulheres e uma criança. Eles foram
enterrados em 1349, ao lado de outras 2.500 vítimas, numa cova coletiva no
antigo cemitério de East Smithfield, na região onde hoje estão a Torre de
Londres e a Ponte de Londres. “Recuperamos cerca de 99% do genoma da antiga Yersinia pestis”, diz o geneticista alemão Johannes Krause, da
Universidade de Tübingen. “Ao comparar esse genoma com o das cepas modernas da Y. pestis, não vimos uma única alteração.” O estudo
detalhado dos 4,6 milhões de bases que compõem o DNA da bactéria explicará por
que ela foi tão perigosa no passado. Na falta desse estudo, existem duas
hipóteses complementares para o fenômeno. A primeira, simples, é a desnutrição
de boa parte da humanidade na época. Enfraquecidas, as pessoas seriam presas
fáceis da bactéria. A outra hipótese é do geneticista Hendrik Poinar, da
Universidade McMaster, no Canadá. Ele diz que a mortalidade no século XIV foi
altíssima porque ninguém tinha resistência imunológica contra aquela bactéria
recém-evoluída. Com base na frequência de mutação da bactéria original e de suas
descendentes modernas, descobriu-se que a doença surgiu entre 1282 e 1343.
Até a reconstrução da
bactéria da Peste, nenhum agente infeccioso com mais de 100 anos fora
recuperado. Em 2005, infectologistas americanos recriaram o vírus influenza da
Gripe Espanhola de 1918, que matou 100 milhões de pessoas. Queriam entender por
que aquela cepa de vírus fora tão mais virulenta que a gripe comum.
Descobriu-se que a gripe de 1918 foi causada pelo vírus influenza do tipo
A(H1N1), a mesma família do vírus causador da pandemia de gripe suína de 2009.
Uma única e letal mutação separa o vírus antigo do atual. Os pesquisadores
ressuscitaram o microrganismo de 1918 para testar sua letalidade. As cobaias
infectadas morreram asfixiadas em quatro dias.
Por que os cientistas correm
riscos ao reviver organismos tão perigosos? Eles dizem que isso é essencial
para evitar epidemias futuras. Os cientistas acreditam que, ao entender a
letalidade da bactéria da Peste Negra ou do vírus da Gripe Espanhola, podem criar
tratamentos preventivos contra possíveis mutações perigosas. Há casos, porém,
em que essa explicação não basta. O pior inimigo da humanidade foi a varíola,
que matou centenas de milhões desde a Antiguidade. Em 1980, após uma
bem-sucedida campanha de vacinação da Organização Mundial da Saúde (OMS), o
vírus da varíola foi declarado extinto na natureza. Como ele sobrevivia apenas
nos seres humanos (ao contrário das gripes, que vêm de pássaros e outros
animais), a vacinação pode efetivamente erradicá-lo. As duas únicas cepas
sobreviventes – que deveriam ter sido destruídas há décadas, por determinação
da OMS – estão no Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos e no
Instituto de Virologia de Moscou. A desconfiança entre americanos e russos faz
com que hesitem na hora de destruir o vírus. Alegam ser preciso preservá-lo
para fazer vacinas. A verdade é outra. Washington e Moscou temem ceder ao
oponente o monopólio de uma arma decisiva numa eventual guerra biológica.
Resulta desse impasse um risco maior: caso o vírus da varíola escape de um
laboratório, encontrará a humanidade indefesa. As crianças não são mais
vacinadas contra a doença, e a imunidade dos adultos já prescreveu. Nem se
fabricam mais vacinas. Segundo a OMS, uma pandemia de varíola poderia matar até
2 bilhões de pessoas.
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